sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

A soberania do estado na era do Cloud Computing - Privatização e inversão de prioridades na gestão dos recursos de SI/TI

Este é um artigo da autoria de Dr.Luís Vidigal, elaborado para o iGov

A administração pública portuguesa, apesar dos processos de modernização e reforma a que foi sujeita nos últimos quarenta anos, ainda traduz alguns dos legados históricos que caracterizaram a formação dos estados modernos da Europa, desde a formação das estruturas inspiradas nas instituições militares e jurídicas do antigo império romano, passando pelos valores, normas e hierarquias da igreja católica, até chegarmos ao processo de criação do espaço institucional e administrativo dos modernos estados europeus. Tal como no passado, a consolidação dos estados modernos passou pela destruição dos poderes tradicionais e regionais, tentando substituir a organização marcadamente patrimonialista por uma organização tendencialmente mais profissional e impessoal, as reformas que estão hoje a ser encetadas não são muito diferentes das que se foram verificando ao longo de todo o processo histórico de afirmação dos estados soberanos e independentes, através da concentração do poder e do domínio dos recursos públicos. Hoje já não se trata de suseranos feudais mas de novas corporações e lobbies nacionais e transnacionais que voltam a ameaçar as soberanias e as independências do estados actuais, sem esquecer a tendência sempre constante para a desagregação por excessiva departamentalização das estruturas internas da administração pública, fortemente acentuada nos últimos trinta anos pela chamada "nova gestão pública" (New Public Management), através do agenciamento e empresarialização que este modelo dogmatizou com um cariz acentuadamente político e liberal.

Se por um lado as tecnologias estão cada vez mais a possibilitar a integração e a interoperabilidade dos processos interdepartamentais orientados para os eventos de vida dos cidadãos e agentes económicos, paradoxalmente a sucessão dos ciclos políticos e a excessiva departamentalização e empresarialização interrompem e atrasam fortemente a evolução do e-Government para estágios mais maduros e evoluídos de serviços que se pretendem progressivamente mais personalizados, mais proactivos, mais eficazes, mais baratos e mais fáceis de usufruir. A nova gestão pública, que os últimos governos tentaram implementar de forma mais ou menos encoberta e que actualmente se acentuou de forma mais explícita, seria suposto que valorizasse a privatização de actividades menos soberanas e susceptíveis de poderem ser devolvidas à economia real, promovendo um estado mais reduzido e menos pesado para os contribuintes e libertando "áreas de negócio" que fossem interessantes e rentáveis para a sociedade. As TIC do sector público desde há muito que são, para as empresas do sector, um alvo apetecível para a privatização, uma vez que a externalização parcial já se vem acentuando nos últimos vinte anos através do outsourcing de serviços técnicos especializados difíceis de encontrar e reter no interior do aparelho do estado. Com efeito, já se está a passar hoje em dia de uma fase tímida de outsourcing parcial para um novo estágio de outsourcing completo de processos de negócio (Business Process Outsourcing). Mas como é que isto se está a passar?


As tecnologias da informação e comunicação poder-se-iam constituir em instrumentos mais ou menos soberanos consoante se aproximam das áreas estratégicas e substantivas da administração pública, específicas de cada ministério, ou se constituem em recursos indiferenciados e menos específicos do sector público, como é o caso da actividades administrativas e instrumentais da gestão de recursos humanos, financeiros e patrimoniais, assim como os serviços de alojamento (hosting) e de gestão de equipamentos e redes. Na perspectiva de Nicholas Carr, trata-se de reter as TI que diferenciam o sector e "realmente interessam" (IT really matters) e descartar para fora as TI que verdadeiramente "não interessam" (IT doesn't matter). O deslumbramento político e a sobrevalorização da tecnologia como instrumento de reforma do estado e de obtenção de resultados a curto prazo, transformaram a "informática", nos últimos dez anos, num instrumento de poder e num recurso a ser capturado pelas várias áreas políticas, capaz de alimentar as suas "feiras de vaidades" e justificar avultados orçamentos, que chegaram aos mil milhões de euros anuais. Esta euforia toldou o raciocínio e a capacidade de gerir e diferenciar as várias tecnologias e os vários sistemas de informação. Pensou-se verdadeiramente mais em tecnologias e em infra-estruturas físicas dispendiosas do que em sistemas de informação, serviços integrados, repositórios únicos e co-produção de valor através das TIC. "Gastou-se" muito dinheiro em tecnologia mas os efeitos na sociedade (outcomes) não tiveram o retorno proporcional (value for money). Chegámos a uma situação limite em que a despesa pública não pode jamais crescer indefinidamente como até aqui e que, pelo contrário, vai ter de se reduzir de forma drástica. O alargamento da administração indirecta do estado, nomeadamente através da criação indiscriminada de institutos, agências, empresas públicas, fundações, ACE, etc, como forma de fugir ao controlo orçamental, de iludir os bloqueios à admissão de trabalhadores no sector público e como instrumento de multiplicação dos cargos de gestores públicos tem de ter um fim imediato. Também o outsourcing está a ser cada vez mais questionado pelos custos que envolve, mas será que não vamos ter surpresas num futuro próximo? Numa conjuntura de fortes restrições financeiras, está-se a assistir a uma quebra significativa de contratação externa de serviços que se verificava até aqui (outsourcing parcial), devolvendo aos serviços da administração pública funções desde há muito entregues a empresas privadas (insourcing total), mesmo sem que se tivessem entretanto reforçado e consolidado funções de maior soberania (gestão, planeamento estratégico e arquitectura de sistemas de informação). Esta tendência irá porventura contribuir para uma demonstração de incompetência técnica operacional no curto prazo, seguida de uma possível retoma das funções operacionais, mas também de uma captura das funções de maior soberania do estado no âmbito dos sistemas e tecnologias da informação (outsourcing total). O risco de captura dos sistemas e tecnologias da informação (SI/TI) do estado existe e a situação precisa ser urgentemente equacionada politicamente e gerida ao mais alto nível. Tudo leva a crer que, a pretexto de poupar e acabar com o outsourcing de aplicações informáticas no curto prazo, poderemos perder mais tarde o controlo e a soberania sobre os sistemas de informação da administração pública e ser capturados por empresas privadas de forma descontrolada e muito mais dispendiosa.

Após a tentativa nos últimos vinte anos de alguns serviços de informática estatais para fortalecer a capacidade de gestão, planeamento estratégico e arquitectura dos SI/TI na administração pública, parece que antes de se ter conseguido dominar as funções mais soberanas, os técnicos de SI/TI vão ser postos à prova nas funções que menos lhes deveriam competir, nomeadamente o desenvolvimento e a exploração de aplicações, para depois serem qualificados de incompetentes e serem substituídos por empresas que assumem o controlo total dos sistemas. Por outro lado, neste momento não vemos qualquer motivo que impeça a privatização de todas as entidades da administração indirecta do Estado que desempenham funções e serviços (ditos) partilhados, os quais podem ser melhor exercidos em regime de concorrência no mercado privado e que não constituem funções nucleares do Estado. Dever-se-á sim reforçar em contrapartida as funções de coordenação e regulação entretanto extintas ou desvalorizadas no âmbito da administração directa do Estado, na euforia da criação de institutos e empresas públicas. Com efeito, nenhuma empresa privada perde soberania de gestão ao entregar processos instrumentais a terceiros, como é o caso da contabilidade, salários, stocks, data centres, redes, etc., mas paradoxalmente o estado português parece que apenas se está a concentrar nestas áreas-meio, em vez de salvaguardar as suas áreas-fim e a sua efectiva capacidade de gestão. Se o outsourcing não for devidamente gerido e a externalização de serviços não for criteriosamente segmentada e priorizada, corre-se o risco "de deitar fora o bebe com a água do banho" e alargar a vergonha das PPP também aos sectores administrativos e a outras áreas mais nucleares do estado. Nos dias de hoje o cumprimento de normas e boas práticas de gestão de serviços de tecnologias de informação (ITIL, ISO 20000, ISO 27001, CMMI, CobIT, etc.) é mandatório. Já não se admite que um grande organismo de informática do estado ou qualquer um dos seus data centres não tenha um nível de maturidade superior a 3 na escala de 5 do CMMI. Ora o actual nível médio de maturidade dos grandes centros de informática da administração pública portuguesa, recentemente calculado pela Inspecção Geral de Finanças, não passa do nível 2. Também aqui somos de opinião que se dê início a um profundo processo de externalização de centros de processamento de dados que possibilitem a utilização de sistemas de cloud computing, garantindo efectivamente níveis elevados de qualidade de serviço, salvaguardando repositórios de dados em áreas de maior soberania e que requeiram requisitos acrescidos de privacidade e segurança. O cloud computing é uma solução tentadora para responder com eficácia e de imediato aos fortes constrangimentos financeiros a que a administração pública está a ser sujeita, mas constituem igualmente uma oportunidade para a afirmação do poder de algumas instituições que ao longo do tempo foram sendo desgastadas pelo processo de desagregação estrutural e de desacreditação técnica do aparelho do estado. Não basta mudar de nome é preciso mudar de políticas e de formas de gestão, pois também aqui é necessário exigir aos prestadores de serviço elevados níveis de cumprimento de normas e de maturidade na escala CMMI. A externalização de alguns processos de negócio do estado na área dos SI/TI, que manifestamente estão em concorrência com as ofertas do mercado, tem vantagens não apenas para a economia, mas sobretudo para o próprio estado, porque se passa a preocupar com as suas áreas mais substantivas, de maior soberania e de maior risco operacional. Quando os recursos são escassos, temos de fazer escolhas e não acreditamos que se pretenda agora abandonar as áreas substantivas e de maior soberania do estado para se dar uma atenção quase exclusiva às áreas meio e instrumentais. Chamamos a isto o paradoxo da inversão de prioridades na gestão dos recursos de SI/TI do estado.

Por outro lado, a externalização torna mais claros os papeis de cliente e de fornecedor dos serviços, uma vez que a recente experiência dos serviços partilhados do estado confundiram os meios com os fins e os reguladores com os regulados, para além de terem contribuído para o aumento efectivo da despesa do estado, uma vez que não reduziu nem reaproveitou um único funcionário dos organismos a quem presta serviços e apenas se limitou a recrutar e a remunerar bem uma legião de novos funcionários, à revelia de toda a política de contenção ao recrutamento externo e em contraciclo com os valores pagos no mercado de trabalho. Quando não há constrangimentos nem controlo técnico-político, é muito fácil ser gestor público e distribuir favores para cativar aplausos. Enquanto se está mais preocupado com as áreas instrumentais e de menor soberania dos SI/TI, desguarnecem-se as competências de planeamento, arquitectura e gestão dos sistemas de informação mais críticos e soberanos do estado, competências estas que permitiriam de forma efectiva uma transformação e reforma de um estado que se pretende mais regulador e menos prestador de serviços de baixo valor acrescentado.

Para concluir e tendo por base os paradoxos da burocracia liberal propostos por David Giauque, que combinam liberdade com constrangimentos, neoliberalismo e burocracia, descentralização e concentração de poder, podemos analisar o potencial transformador da introdução das tecnologias da informação na administração pública, as quais na actualidade combinam de igual modo estes três paradoxos. Com efeito a introdução da computação pessoal nos últimos trinta anos deram liberdade individual aos utilizadores, ao mesmo tempo que foi possível uma nova recentralização dos dados e processos, através da Internet, do business intelligence, do cloud computing, etc. Por outro lado, o neoliberalismo permitido nas aplicações departamentais acaba por ser equilibrado pela utilização de normas semânticas e tecnológicas, enquanto quadros de referência para a interoperabilidade entre sistemas heterogéneos e para uma efectiva desmaterialização de processos do princípio ao fim (end to end). Por último, nunca como hoje foi possível descentralizar e centralizar ao mesmo tempo o poder nas organizações, por maior que elas sejam, pois as tecnologias permitem-nos aproximar os recursos informacionais a todas as pessoas de uma organização de forma totalmente descentralizada e operacional, ao mesmo tempo que possibilitam a agregação de dados e informação para apoio às decisões de topo de forma centralizada e estratégica.

Sem comentários: