sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Contributo da APDSI para o sucesso da missão do GPTIC

Leia a reacção da APDSI, comentários e sugestões ao "Plano global estratégico de racionalização e redução de custos de TIC na Administração Pública", enviado aos responsáveis políticos e ao GPTIC.


O «Plano global estratégico de racionalização e redução de custos de TIC na Administração Pública» (Plano), aprovado em Conselho de Ministros no passado dia 12 de Janeiro, é de uma enorme relevância para a evolução das TIC na Administração Pública nos próximos anos e, por consequência, para a evolução de componentes fundamentais da Sociedade da Informação em Portugal. O documento merece, nesse sentido, uma grande atenção por parte da APDSI, cuja Direcção, após uma primeira leitura atenta e imbuída do espirito de colaboração e de influência construtiva que a norteia, entende fazer os comentários e sugestões expostos em seguida.

1) Agradecer a oportunidade que lhe foi dada, ainda que breve, de contribuir para a elaboração do Plano e congratular-se pelo facto de que várias das suas opiniões, incluindo algumas expostas na 12ª Tomada de Posição do Grupo de Alto Nível da APDSI, terem sido consideradas.

2) Apreciar a boa organização e abrangência do documento, sobretudo tendo em conta o curtíssimo prazo em que foi executado; ainda que seja, em boa medida, um «plano de planos», constitui-se como um ponto de partida estruturado e saudavelmente ambicioso.

3) Assinalar, com agrado, a inclusão de temas muitas vezes ignorados em iniciativas passadas comparáveis; destacamos, neste domínio, as medidas de estímulo ao crescimento económico, em particular as 23, 24 e 25.

4) Assinalar, com agrado, a inclusão da dimensão dos benefícios das TIC na AP no seu todo, essencial para uma correcta definição e avaliação das políticas para as TIC, as quais não devem deixar de considerar esses impactos positivos. São bons exemplos dessa inclusão a aposta essencial no modelo de serviços partilhados (medida 10), a ênfase colocada numa efectiva modernização administrativa dos organismos (medida 14) e ainda a resolução do muito esquecido problema dos arquivos da AP (medida 15).

5) Alertar para a provável existência, em várias medidas, de um optimismo excessivo em relação aos prazos; mesmo tendo em conta que prazos ambiciosos podem ser um instrumento de pressão virtuoso, contribuindo para acelerar a concretização dos objectivos, importa situar as expectativas de poupança em horizontes realizáveis, sabendo-se qual a experiência da AP neste domínio, tantas vezes motivo de desapontamento. Entendemos serem optimistas os prazos de concretização estimados para 2012 e, em menor expressão, para 2013. Em termos de medidas, identificamos maiores riscos quanto a prazos nas medidas 2, 7, 8, 10, 12, 17 e 19. Esta percepção fundamenta-se nos seguintes factores:

a. Medidas que dependem de levantamentos, planos detalhados, desenhos ou definições várias, apontadas para um horizonte de apenas 6 meses;

b. Medidas que dependem de mecanismos de coordenação e de contributos de organismos múltiplos, numa altura em que a própria AP se ajusta à sua nova organização, com uma capacidade de resposta provavelmente deteriorada;

c. Medidas cujas poupanças só se concretizam depois de terminados ou renegociados contratos em vigor, ou após processos de aquisição complexos e longos.

d. Medidas que dependem de processos legislativos que a própria tutela política muitas vezes não controla na íntegra e que invariavelmente se atrasam face às expectativas.

6) Alertar para a existência de prováveis redundâncias na estimativa de algumas poupanças, em especial pela elevada interdependência de algumas medidas, tendo em conta a sua natureza transversal. Este risco parece-nos mais visível entre a medida 2 e as 6, 7 e 8; noutro plano, entre a 2, a 6 e a 22.

7) Alertar para a provável existência, em várias medidas, de um optimismo excessivo em relação às estimativas de poupança; é certo que são estimativas de alto nível e de difícil execução, pelo que apontamos apenas a nossa percepção. A sobreavaliação das poupanças parece-nos mais visível nas medidas 2, 6, 7, 11, 12, 14 e 21 e para ela contribuem, para além de outros factores, os apontados nos pontos anteriores quanto a prazos e a redundâncias.

8) Recordar que existem algumas discrepâncias, não insuperáveis mas provavelmente de difícil gestão política e operacional, entre as Leis Orgânicas dos vários ministérios, recentemente publicadas, e as medidas do Plano que pressupõem a centralização das TIC a nível de ministério ou a nível geral. Esta dificuldade, que não é nova (esteve presente nos trabalhos da MARAP e do PRACE), não deve ser subestimada, pelo que se sugere uma preparação antecipada e cuidadosa dos dossiês mais difíceis.

9) Manifestar preocupação pela não consideração no Plano dos investimentos de modernização e desenvolvimento do suporte TIC à actividade da AP em geral, que nos parecem essenciais, quer para a própria concretização do Plano quer para atingir níveis de progresso aceitáveis no horizonte temporal em análise. É certo que a ênfase do documento, por motivos compreensíveis, é a redução de custos, numa óptica de fazer mais (o mais possível) com menos, e é certo que as estimativas de poupança são apresentadas numa óptica líquida (benefícios menos custos), mas, em todo o caso, pensamos que a realidade imporá, em paralelo com a consecução das poupanças, novas e normais componentes de custo:

a. Para conseguir a concretização das poupanças, dimensão em que nos parece haver alguma subavaliação do esforço de mudança preconizado e alguma sobreavaliação da capacidade interna da AP; em vários casos, as medidas implicarão investimentos relevantes, ainda que por certo compensadores;

b. Para acomodar os inexoráveis ciclos de manutenção e de renovação das TIC, assegurando a manutenção dos níveis de operacionalidade e de conformidade com a lei (fazer «o mesmo»).

c. Para acomodar o indispensável caminho de progresso e modernização da AP (novos sistemas, novas infra-estruturas, novas tecnologias) sem o qual os esforços para se vir a conseguir fazer «mais» dificilmente serão bem sucedidos.

10) Manifestar apreensão pela visão, que parece transparecer no documento, de que o aumento dos custos com TIC na AP, quer em termos absolutos quer relativos, é em si um problema a resolver; concordamos que a explosão desses custos sem os correspondentes benefícios era um caminho que importava inverter, mas preconizamos que se mantenha sempre uma visão relativa entre os custos e os benefícios, estando convictos de que podem existir benefícios e poupanças significativas a longo prazo pelo aumento das despesas TIC em termos relativos, como aconteceu em outros sectores «informação-intensivos» da economia. Por outras palavras, «mais despesa TIC» pode valer a pena, desde, naturalmente, que seja «boa despesa». A intenção de levar os custos TIC a níveis inferiores aos de 2005 ou a inclusão de um objectivo de simples redução dos custos em % são exemplos de conteúdos que nos geram apreensão.

11) Reafirmar a preocupação expressa no documento quanto ao impacto do Plano no mercado nacional de TIC; dada o elevado peso da AP nesse mercado, várias decisões do Plano não serão neutras e terão consequências muito visíveis em vários subsectores desse mercado, originando desafios de concorrência e de regulação. Importa que a AP consiga manter um adequado equilíbrio entre a necessidade de prosseguir o seu interesse interno e as consequências dessa prossecução nos mercados e na economia. A este propósito, importa recordar que, por mais que o Plano tenha a boa intenção de preservar e estimular a indústria nacional de TIC, o simples facto de se pretender reduzir significativamente a despesa total em TIC colocará a essa indústria um desafio de adaptação relevante.

12) Alertar para a dimensão das dificuldades que a implementação do Plano irá enfrentar, não para que isso se assuma como um elemento de desmotivação, mas para que exista plena consciência da complexidade das tarefas a executar, das capacidades a mobilizar, da persistência a ter e do patrocínio político a envolver. Citamos como exemplos de vectores de dificuldade muitas vezes subavaliados:

a. O esforço de mudança nas pessoas e nas organizações da AP;

b. O facto de que existem, por outros motivos (novas Leis Orgânicas, redução de chefias, cortes orçamentais), factores de entropia nas pessoas e nos organismos que poderão gerar reduções genéricas de flexibilidade e de capacidade de resposta;

c. O facto de que as capacidades internas da AP, em particular nos domínios TIC, estão muito aquém das exigências dos desafios do Plano.

13) Sugerir que se considerem logo de início reforços de capacidade para a concretização do Plano, ainda que contrariando, no curto prazo, a lógica dominante da redução de custos e da não contratação de pessoas; esse reforço diminuirá os riscos de «afogamento» dos protagonistas da tarefa e de uma rápida e fatal perda de credibilidade da iniciativa. Considerando os mapas de acções e de responsabilidades expostos, o reforço de capacidade da AMA, em moldes significativos, afigura-se-nos essencial.

Esperamos que estes nossos comentários e sugestões sejam úteis e reafirmamos que poderá o Governo e a AP continuar a contar com o contributo empenhado e, a todos os títulos, independente, da APDSI.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Paradoxos na gestão dos recursos do Estado - A inversão de prioridades no uso das TIC

Portugal tem vindo nos últimos trinta anos a sofrer influências da chamada “nova gestão pública”, visando a passagem de estruturas tradicionais, baseadas no estrito cumprimento de normas, actuando em monopólio, hierarquizadas e caracterizadas pela estabilidade e previsibilidade, para estruturas pós-burocráticas tendencialmente mais eficientes, actuando num ambiente de concorrência e competição entre agentes públicos e privados e num sistema orgânico orientado para o “cliente”, colocando maior ênfase na mudança, na inovação e na produção de produtos e serviços públicos. Era suposto que as antigas direcções gerais fossem sendo divididas em pequenos centros de estudo e formação de políticas públicas, que permanecessem na administração directa do estado, transferindo-se as actividades operacionais para um conjunto de serviços satélites, no âmbito da administração indirecta do estado, capazes de implementar essas políticas e preparar-se para uma possível privatização futura. Seria suposto que se tornassem claros os papéis das unidades estratégicas em relação às unidades operacionais, permitindo uma maior clarificação dos limites entre o sector público e o sector privado.
A passagem de um modelo burocrático tradicional para um modelo pós-burocrático nunca chegou verdadeiramente a acontecer em Portugal, tendo-se persistido em sinais tradicionais através da actuação centralizada e em monopólio a par de uma empresarialização fora de controlo, com unidades independentes que se foram apropriando de competências estratégicas e regulatórias, muito para além das tarefas operacionais específicas da administração indirecta estado. O XIX Governo está a ter uma prática contraditória com o modelo pós-burocrático, ao retirar autonomias aos vários níveis do sector estado, nomeadamente convertendo empresas em institutos e institutos em direcções-gerais, pretendendo deste modo vigiar de perto os recursos que estiveram fora de controlo nos últimos anos.
Quando um Governo chega ao poder, sobretudo num período de crise como este, deveria fazer algumas perguntas prioritárias, se quisesse tomar decisões com alguma objectividade: Quantos funcionários públicos temos, onde estão, que categorias, qual a idade, qual a antiguidade, quanto custam, o que fazem? Que dinheiro existe, onde está, quais os compromissos, quanto devemos? Que património possuímos, onde está, qual o valor, qual a antiguidade e estado de conservação? As respostas deveriam ser únicas, certeiras e concertadas entre os diversos organismos horizontais que seria suposto disporem de fontes de informação fiáveis e sincronizadas, capazes de responder prontamente a estas perguntas, tais como a DGO - Direcção Geral do Orçamento, a DGAEP - Direcção Geral da Administração e do Emprego Público, a DGT - Direcção Geral do Tesouro, CGA – Caixa Geral de Aposentações e a GERAP - Empresa de Gestão Partilhada de Recursos da .
Desde o início dos anos 90 com o aparecimento da RAFE (Reforma Financeira do Estado) e das suas aplicações SIC e SRH, bem como da unidade de tesouraria, que se teve uma preocupação de controlo universal dos recursos da administração pública. No início da implementação do POCP / RIGORE a par da criação do SIGRAP (Sistema de Gestão dos Recursos da AP) no âmbito do Sistema de Controlo Interno, aprovado por Manuela Ferreira Leite em Janeiro de 2003, houve um reforço da preocupação no controlo financeiro de todos os subsectores do Estado onde circulavam dinheiros públicos. No domínio dos recursos humanos, a BDAP, criada no final dos anos 90 a cargo do Instituto de Gestão da Base de Dados dos Recursos Humanos da Administração Pública e mais tarde retomada em 2003 pela DGAEP e pelo II/MFAP, foi uma boa tentativa de alargar o conhecimento dos recursos humanos afectos à administração pública central, regional e local e aos serviços e fundos autónomos, ficando de fora apenas o sector público empresarial. Esta iniciativa teve também o mérito de criar normas de interoperabilidade com o SRH e outros ERP em uso no sector público, o que tornou a universalidade dos dados mais fácil e rápida de alcançar. Os últimos dados efectivos deste sistema semiautomático remontam a 2005.
Com a criação da GERAP em 2007, todo este processo de cobrir a totalidade dos recursos financeiros e humanos foi interrompido e enveredou-se por uma estratégia em sentido inverso, com uma preocupação centrada na implementação de ERP departamentais e pela venda avulsa destes serviços e aplicações aos organismos. A universalidade e a consequente gestão global dos recursos do estado deixou de ser uma prioridade, numa altura em que seria mais necessária, não apenas pelo contexto de crise, mas também devido à passagem acelerada nos últimos 10 anos dos organismos da administração directa para a administração indirecta do estado, de forma deliberada mas também descontrolada. A própria unidade de tesouraria que foi uma tónica da RAFE nos anos 90 está a ser posta em causa, como têm sido referido nos relatórios do Tribunal de Contas sobre as contas no Tesouro, que não chegam a incluir 6% das empresas públicas, desrespeitando o princípio da unidade de tesouraria imposto pela União Europeia.
Nos recursos humanos, a BDAP http://www.bdap.min-financas.pt, que seria suposto estar permanentemente actualizada, teve a sua última actualização a 6 de Julho de 2007, pouco tempo depois da criação da GERAP. Nos recursos financeiros e patrimoniais, foi também suspenso em 2007 o SIGRAP – Sistema de Informação de Gestão dos Recursos da Administração Pública, criado no âmbito do Sistema de Controlo Interno durante o período de Manuela Ferreira Leite. A estratégia de adopção de um sistema ERP único para toda a administração pública gerido pela GERAP, fez esquecer a necessidade de criar condições de interoperabilidade entre os sistemas departamentais existentes e o sistema central. O “negócio” da GERAP ofuscou completamente a gestão global dos recursos do estado, passando a ser uma “agência de vendas” de pacotes SAP, à procura de um “mercado” sem fim à vista. A GERAP, para além de não ter cumprido o seu papel, quase destruiu a DGAEP e o Instituto de Informática e abalou seriamente o funcionamento da DGO. É fácil ser “Fornecedor” quando os “Clientes” são obrigados a comprar e quando quem devia regular este “mercado” é desautorizado e fragilizado nas suas competências (DGAEP, DGO, etc.).
Está-se a olhar para algumas árvores do nosso quintal em vez de se ver a totalidade da floresta do nosso território e infelizmente confunde-se autonomia e desorçamentação com descontrolo dos recursos do estado. É preciso inverter quanto antes este caminho: A aposta deverá centrar-se na criação de mecanismos de interoperabilidade entre a diversidade dos sistemas locais e os sistemas centrais suportados na concertação semântica e em ferramentas adequadas de business intelligence.
O conceito de Serviços Partilhados, introduzido em 2005 na gestão dos recursos da administração pública pelo Instituto de Informática, foi totalmente deturpado pela GERAP, passando a ser uma apropriação centralista e autoritária de recursos sem qualquer regulação institucional ou de mercado. Desde 2007, todas as atenções e prioridades se viraram para a “venda” em monopólio de ERP locais e espaço de computador, num exercício de autolegitimação para impressionar o poder político, que busca desesperadamente soluções para a redução do défice.
Qualquer empresa portuguesa na área dos sistemas de gestão (ERP) está impedida de vender serviços ao estado, a não ser que seja SAP. Em benchmarkings recentes a GERAP apresentou custos que vão para além do dobro dos custos de outras soluções disponíveis no mercado português e os prazos para instalação do GeRFiP e do GeRHuP vão para lá dos dois anos, por incapacidade manifesta de resposta às solicitações dos organismos. O estado está, através da GERAP, a concorrer directamente com o sector privado, viciando o jogo através da reserva de normas de interoperabilidade semântica, que deveriam ser totalmente públicas e transparentes, bloqueando a fluidez dos dados entre os vários sistemas locais e a camada estratégica dos sistemas centrais e impedindo o funcionamento em tempo real da gestão dos recursos humanos, financeiros e patrimoniais do estado, de suporte fiável às políticas públicas em curso.
Como vai ser possível ter rigor na Governance e no controlo global dos recursos da administração pública? Como se vão fazer os próximos Orçamentos? Como se vai fechar a Conta? Quantos são os trabalhadores do estado? Como gerir as carreiras de pessoal e responder às pressões corporativas em tempo de crise? Qual o valor patrimonial do estado? Para quando uma balanço do estado? Para quando o controlo efectivo da Despesa Pública?

Texto publicado a 10 de Janeiro de 2012 no TeK.Sapo

É interessante ver a este propósito o estudo elaborado pelo actual ministro Vitor Gaspar, enquanto economista do Banco de Portugal em 2006 "EXCESS BURDEN AND THE COST OF INEFFICIENCY IN PUBLIC SERVICES PROVISION"

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

A soberania do estado na era do Cloud Computing - Privatização e inversão de prioridades na gestão dos recursos de SI/TI

Este é um artigo da autoria de Dr.Luís Vidigal, elaborado para o iGov

A administração pública portuguesa, apesar dos processos de modernização e reforma a que foi sujeita nos últimos quarenta anos, ainda traduz alguns dos legados históricos que caracterizaram a formação dos estados modernos da Europa, desde a formação das estruturas inspiradas nas instituições militares e jurídicas do antigo império romano, passando pelos valores, normas e hierarquias da igreja católica, até chegarmos ao processo de criação do espaço institucional e administrativo dos modernos estados europeus. Tal como no passado, a consolidação dos estados modernos passou pela destruição dos poderes tradicionais e regionais, tentando substituir a organização marcadamente patrimonialista por uma organização tendencialmente mais profissional e impessoal, as reformas que estão hoje a ser encetadas não são muito diferentes das que se foram verificando ao longo de todo o processo histórico de afirmação dos estados soberanos e independentes, através da concentração do poder e do domínio dos recursos públicos. Hoje já não se trata de suseranos feudais mas de novas corporações e lobbies nacionais e transnacionais que voltam a ameaçar as soberanias e as independências do estados actuais, sem esquecer a tendência sempre constante para a desagregação por excessiva departamentalização das estruturas internas da administração pública, fortemente acentuada nos últimos trinta anos pela chamada "nova gestão pública" (New Public Management), através do agenciamento e empresarialização que este modelo dogmatizou com um cariz acentuadamente político e liberal.

Se por um lado as tecnologias estão cada vez mais a possibilitar a integração e a interoperabilidade dos processos interdepartamentais orientados para os eventos de vida dos cidadãos e agentes económicos, paradoxalmente a sucessão dos ciclos políticos e a excessiva departamentalização e empresarialização interrompem e atrasam fortemente a evolução do e-Government para estágios mais maduros e evoluídos de serviços que se pretendem progressivamente mais personalizados, mais proactivos, mais eficazes, mais baratos e mais fáceis de usufruir. A nova gestão pública, que os últimos governos tentaram implementar de forma mais ou menos encoberta e que actualmente se acentuou de forma mais explícita, seria suposto que valorizasse a privatização de actividades menos soberanas e susceptíveis de poderem ser devolvidas à economia real, promovendo um estado mais reduzido e menos pesado para os contribuintes e libertando "áreas de negócio" que fossem interessantes e rentáveis para a sociedade. As TIC do sector público desde há muito que são, para as empresas do sector, um alvo apetecível para a privatização, uma vez que a externalização parcial já se vem acentuando nos últimos vinte anos através do outsourcing de serviços técnicos especializados difíceis de encontrar e reter no interior do aparelho do estado. Com efeito, já se está a passar hoje em dia de uma fase tímida de outsourcing parcial para um novo estágio de outsourcing completo de processos de negócio (Business Process Outsourcing). Mas como é que isto se está a passar?


As tecnologias da informação e comunicação poder-se-iam constituir em instrumentos mais ou menos soberanos consoante se aproximam das áreas estratégicas e substantivas da administração pública, específicas de cada ministério, ou se constituem em recursos indiferenciados e menos específicos do sector público, como é o caso da actividades administrativas e instrumentais da gestão de recursos humanos, financeiros e patrimoniais, assim como os serviços de alojamento (hosting) e de gestão de equipamentos e redes. Na perspectiva de Nicholas Carr, trata-se de reter as TI que diferenciam o sector e "realmente interessam" (IT really matters) e descartar para fora as TI que verdadeiramente "não interessam" (IT doesn't matter). O deslumbramento político e a sobrevalorização da tecnologia como instrumento de reforma do estado e de obtenção de resultados a curto prazo, transformaram a "informática", nos últimos dez anos, num instrumento de poder e num recurso a ser capturado pelas várias áreas políticas, capaz de alimentar as suas "feiras de vaidades" e justificar avultados orçamentos, que chegaram aos mil milhões de euros anuais. Esta euforia toldou o raciocínio e a capacidade de gerir e diferenciar as várias tecnologias e os vários sistemas de informação. Pensou-se verdadeiramente mais em tecnologias e em infra-estruturas físicas dispendiosas do que em sistemas de informação, serviços integrados, repositórios únicos e co-produção de valor através das TIC. "Gastou-se" muito dinheiro em tecnologia mas os efeitos na sociedade (outcomes) não tiveram o retorno proporcional (value for money). Chegámos a uma situação limite em que a despesa pública não pode jamais crescer indefinidamente como até aqui e que, pelo contrário, vai ter de se reduzir de forma drástica. O alargamento da administração indirecta do estado, nomeadamente através da criação indiscriminada de institutos, agências, empresas públicas, fundações, ACE, etc, como forma de fugir ao controlo orçamental, de iludir os bloqueios à admissão de trabalhadores no sector público e como instrumento de multiplicação dos cargos de gestores públicos tem de ter um fim imediato. Também o outsourcing está a ser cada vez mais questionado pelos custos que envolve, mas será que não vamos ter surpresas num futuro próximo? Numa conjuntura de fortes restrições financeiras, está-se a assistir a uma quebra significativa de contratação externa de serviços que se verificava até aqui (outsourcing parcial), devolvendo aos serviços da administração pública funções desde há muito entregues a empresas privadas (insourcing total), mesmo sem que se tivessem entretanto reforçado e consolidado funções de maior soberania (gestão, planeamento estratégico e arquitectura de sistemas de informação). Esta tendência irá porventura contribuir para uma demonstração de incompetência técnica operacional no curto prazo, seguida de uma possível retoma das funções operacionais, mas também de uma captura das funções de maior soberania do estado no âmbito dos sistemas e tecnologias da informação (outsourcing total). O risco de captura dos sistemas e tecnologias da informação (SI/TI) do estado existe e a situação precisa ser urgentemente equacionada politicamente e gerida ao mais alto nível. Tudo leva a crer que, a pretexto de poupar e acabar com o outsourcing de aplicações informáticas no curto prazo, poderemos perder mais tarde o controlo e a soberania sobre os sistemas de informação da administração pública e ser capturados por empresas privadas de forma descontrolada e muito mais dispendiosa.

Após a tentativa nos últimos vinte anos de alguns serviços de informática estatais para fortalecer a capacidade de gestão, planeamento estratégico e arquitectura dos SI/TI na administração pública, parece que antes de se ter conseguido dominar as funções mais soberanas, os técnicos de SI/TI vão ser postos à prova nas funções que menos lhes deveriam competir, nomeadamente o desenvolvimento e a exploração de aplicações, para depois serem qualificados de incompetentes e serem substituídos por empresas que assumem o controlo total dos sistemas. Por outro lado, neste momento não vemos qualquer motivo que impeça a privatização de todas as entidades da administração indirecta do Estado que desempenham funções e serviços (ditos) partilhados, os quais podem ser melhor exercidos em regime de concorrência no mercado privado e que não constituem funções nucleares do Estado. Dever-se-á sim reforçar em contrapartida as funções de coordenação e regulação entretanto extintas ou desvalorizadas no âmbito da administração directa do Estado, na euforia da criação de institutos e empresas públicas. Com efeito, nenhuma empresa privada perde soberania de gestão ao entregar processos instrumentais a terceiros, como é o caso da contabilidade, salários, stocks, data centres, redes, etc., mas paradoxalmente o estado português parece que apenas se está a concentrar nestas áreas-meio, em vez de salvaguardar as suas áreas-fim e a sua efectiva capacidade de gestão. Se o outsourcing não for devidamente gerido e a externalização de serviços não for criteriosamente segmentada e priorizada, corre-se o risco "de deitar fora o bebe com a água do banho" e alargar a vergonha das PPP também aos sectores administrativos e a outras áreas mais nucleares do estado. Nos dias de hoje o cumprimento de normas e boas práticas de gestão de serviços de tecnologias de informação (ITIL, ISO 20000, ISO 27001, CMMI, CobIT, etc.) é mandatório. Já não se admite que um grande organismo de informática do estado ou qualquer um dos seus data centres não tenha um nível de maturidade superior a 3 na escala de 5 do CMMI. Ora o actual nível médio de maturidade dos grandes centros de informática da administração pública portuguesa, recentemente calculado pela Inspecção Geral de Finanças, não passa do nível 2. Também aqui somos de opinião que se dê início a um profundo processo de externalização de centros de processamento de dados que possibilitem a utilização de sistemas de cloud computing, garantindo efectivamente níveis elevados de qualidade de serviço, salvaguardando repositórios de dados em áreas de maior soberania e que requeiram requisitos acrescidos de privacidade e segurança. O cloud computing é uma solução tentadora para responder com eficácia e de imediato aos fortes constrangimentos financeiros a que a administração pública está a ser sujeita, mas constituem igualmente uma oportunidade para a afirmação do poder de algumas instituições que ao longo do tempo foram sendo desgastadas pelo processo de desagregação estrutural e de desacreditação técnica do aparelho do estado. Não basta mudar de nome é preciso mudar de políticas e de formas de gestão, pois também aqui é necessário exigir aos prestadores de serviço elevados níveis de cumprimento de normas e de maturidade na escala CMMI. A externalização de alguns processos de negócio do estado na área dos SI/TI, que manifestamente estão em concorrência com as ofertas do mercado, tem vantagens não apenas para a economia, mas sobretudo para o próprio estado, porque se passa a preocupar com as suas áreas mais substantivas, de maior soberania e de maior risco operacional. Quando os recursos são escassos, temos de fazer escolhas e não acreditamos que se pretenda agora abandonar as áreas substantivas e de maior soberania do estado para se dar uma atenção quase exclusiva às áreas meio e instrumentais. Chamamos a isto o paradoxo da inversão de prioridades na gestão dos recursos de SI/TI do estado.

Por outro lado, a externalização torna mais claros os papeis de cliente e de fornecedor dos serviços, uma vez que a recente experiência dos serviços partilhados do estado confundiram os meios com os fins e os reguladores com os regulados, para além de terem contribuído para o aumento efectivo da despesa do estado, uma vez que não reduziu nem reaproveitou um único funcionário dos organismos a quem presta serviços e apenas se limitou a recrutar e a remunerar bem uma legião de novos funcionários, à revelia de toda a política de contenção ao recrutamento externo e em contraciclo com os valores pagos no mercado de trabalho. Quando não há constrangimentos nem controlo técnico-político, é muito fácil ser gestor público e distribuir favores para cativar aplausos. Enquanto se está mais preocupado com as áreas instrumentais e de menor soberania dos SI/TI, desguarnecem-se as competências de planeamento, arquitectura e gestão dos sistemas de informação mais críticos e soberanos do estado, competências estas que permitiriam de forma efectiva uma transformação e reforma de um estado que se pretende mais regulador e menos prestador de serviços de baixo valor acrescentado.

Para concluir e tendo por base os paradoxos da burocracia liberal propostos por David Giauque, que combinam liberdade com constrangimentos, neoliberalismo e burocracia, descentralização e concentração de poder, podemos analisar o potencial transformador da introdução das tecnologias da informação na administração pública, as quais na actualidade combinam de igual modo estes três paradoxos. Com efeito a introdução da computação pessoal nos últimos trinta anos deram liberdade individual aos utilizadores, ao mesmo tempo que foi possível uma nova recentralização dos dados e processos, através da Internet, do business intelligence, do cloud computing, etc. Por outro lado, o neoliberalismo permitido nas aplicações departamentais acaba por ser equilibrado pela utilização de normas semânticas e tecnológicas, enquanto quadros de referência para a interoperabilidade entre sistemas heterogéneos e para uma efectiva desmaterialização de processos do princípio ao fim (end to end). Por último, nunca como hoje foi possível descentralizar e centralizar ao mesmo tempo o poder nas organizações, por maior que elas sejam, pois as tecnologias permitem-nos aproximar os recursos informacionais a todas as pessoas de uma organização de forma totalmente descentralizada e operacional, ao mesmo tempo que possibilitam a agregação de dados e informação para apoio às decisões de topo de forma centralizada e estratégica.

"A TeleMedicina tem vindo a entrar em Portugal sem dar muito nas vistas"

Pela: Profª Maria Helena Monteiro

Em entrevista ao Fórum Hospital do Futuro, Maria Helena Monteiro, membro do Grupo Permanente da Saúde da APDSI (Associação para a Promoção e Desenvolvimento da Sociedade da Informação), avalia e comenta a evolução das TIC no sector da saúde em Portugal. Recorde a entrevista de 31 de Agosto de 2011 aqui.